Comunidades Indígenas na Floresta Nacional de Três Barras: conservação, exploração e a face seletiva da justiça ambiental.
- Vontade Popular

- 5 de set.
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Atualizado: 4 de out.

Maringá -Setembro de 2025
Em Santa Catarina, a Floresta Nacional de Três Barras (FLONA) tornou-se palco de um conflito que escancara as contradições entre o discurso oficial de conservação ambiental e as práticas de exclusão histórica dos povos indígenas.
Desde 2024, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) move uma ação de reintegração de posse contra comunidades indígenas que ocupam parte da unidade de conservação. A motivação central não é a preservação da floresta nativa, mas a exploração econômica de uma área de pinus plantada, cuja madeira já estava prestes a ser licitada para corte e comercialização. O lucro seria revertido ao próprio ICMBio e às prefeituras de Três Barras e Canoinhas.
Proposta negada
As comunidades indígenas, longe de se colocarem como obstáculo, apresentaram alternativas concretas de coexistência. Os Xokleng e os Kaingang, vindos da Terra Indígena Ibirama La Klãnõ, no Alto Vale do Itajaí, ofereceram deslocar-se para outra área dentro da FLONA enquanto ocorresse a derrubada dos pinus; dispuseram-se a contribuir no reflorestamento com espécies nativas; e até sugeriram que parte da receita gerada com a madeira fosse revertida em projetos sociais e culturais, como forma de reparação histórica pelos traumas da colonização e da Guerra do Contestado.
Nenhuma dessas propostas, entretanto, foi considerada. O único “acordo” apresentado até o momento exige a saída definitiva das comunidades da unidade de conservação.
Legitimidade indígena negada pela justiça
Em novembro de 2024, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) concluiu um Relatório de Qualificação de Reivindicação Fundiária sobre a situação da Floresta Nacional de Três Barras. O documento reconhece formalmente os relatos da comunidade e registra, com base em documentos históricos, que a presença dos povos Xokleng e Kaingang na região é anterior à criação da unidade de conservação.
Na mesma direção, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reforçou a importância cultural e histórica da presença indígena, destacando vínculos com a memória da Guerra do Contestado e com os processos de colonização que marcaram a expropriação desses povos no Planalto Norte de Santa Catarina. Ou seja, duas instituições federais especializadas apontaram que a presença indígena não é “invasão”, mas parte de uma ocupação histórica e legítima.
Ainda assim, em dezembro de 2024, a Justiça Federal de Santa Catarina emitiu sentença de reintegração de posse, fixando prazo de 60 dias para a desocupação. A decisão tratou a comunidade como mera “ocupante irregular”, ignorando tanto o relatório da FUNAI quanto o parecer do IPHAN. O argumento central da sentença foi a manutenção de um critério estritamente formal: o título de propriedade da área pertence à União, administrada pelo ICMBio.
Na prática, a decisão judicial desconsidera que a própria União, ao criar a FLONA, nunca reconheceu nem consultou adequadamente os povos que já habitavam o território. Ao reduzir a questão a um problema de “posse irregular”, a Justiça reproduz não apenas a lógica histórica de invisibilização dos direitos originários, mas também a racionalidade moderna que confere legitimidade quase absoluta ao título de propriedade — mesmo quando este se sustenta sobre séculos de expropriação e violência.
Essa contradição revela uma engrenagem seletiva: enquanto relatórios técnicos reconhecem legitimidade cultural, histórica e jurídica para a permanência indígena, a sentença judicial reafirma a supremacia de um modelo jurídico e econômico que privilegia a propriedade formal do Estado e os interesses de exploração econômica da floresta. Ao fazê-lo, desqualifica os modos de existência e de conhecimento que os povos Xokleng e Kaingang reivindicam, reproduzindo a desigualdade epistêmica que coloca os saberes hegemônicos do direito e da gestão ambiental acima das formas tradicionais de relação com a terra.
Conservação seletiva
Esse contraste não é casual. Ele reflete a seletividade do direito ambiental no Brasil e, ao mesmo tempo, expõe os limites da institucionalidade burguesa. Enquanto o latifúndio e os grandes grupos econômicos, mesmo quando cometem crimes ambientais graves, enfrentam processos morosos, repletos de recursos e que frequentemente resultam em impunidade ou penalidades brandas, as comunidades tradicionais, quando reivindicam territórios ou resistem à expropriação, recebem resposta imediata e severa: judicialização acelerada, ordens de reintegração de posse e repressão policial.
Essa assimetria revela o caráter de classe do direito, que, embora se apresente como formalmente neutro, opera de forma estruturada para garantir a proteção da propriedade concentrada e assegurar a fluidez dos fluxos de capital.
O discurso institucional é de sustentabilidade, inclusão e conservação. A prática concreta é de espoliação e exclusão. Os povos indígenas são aceitos como “parceiros” apenas quando cabem no projeto de mercado; quando afirmam autonomia territorial, tornam-se obstáculos a serem removidos.
A disputa pela FLONA de Três Barras não é apenas um conflito local sobre pinus ou madeira. É um reflexo dos mecanismos do Estado brasileiro: um direito ambiental que protege a natureza desde que ela seja transformada em ativo econômico e que marginaliza aqueles que poderiam ser seus aliados mais consistentes — os povos indígenas e tradicionais, cuja história e conhecimento seguem sendo tratados como entraves.
No fim, a disputa pela FLONA de Três Barras expõe o verdadeiro papel do Estado burguês: administrar a natureza como mercadoria e reprimir os povos que ousam reivindicar a terra como vida.


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